O intolerável das intolerâncias

Doutora, eu li na internet que tem alguns testes que te informam todos os alimentos que te fazem se sentir mal, mesmo para as pessoas que sofrem de alergias. Eles são muito caros, um sinal de que deve ser bom, também o meu vizinho que tem, diz que mudou sua vida. Você recomendaria para mim?

Este exemplo é o paciente que valoriza a sua opinião, outros vêm com o teste já realizado.

Antes também, ao responder uma pergunta de um paciente, comentei que o assunto dava muito trabalho responder. Hoje acho que o oposto, a minha resposta não tem dúvidas. Felizmente, nem sempre é tão difícil...

A fim de responder adequadamente, primeiro preciso explicar as bases médicas das reações alimentares nas pessoas.


Essas reacções são comuns. Aproximadamente 20% da população apresenta em algum momento da sua vida, um problema de hipersensibilidade com alimentos. Nos últimos anos tem havido um aumento tanto na frequência quanto na preocupação com essas reações em países desenvolvidos.

As limitações da medicina e o acesso a todos os tipos de informação através da Internet criou nas pessoas a falsa crença de que muitos dos seus sintomas, como dor nas articulações, fadiga, enxaqueca, eczema, prurido, asma, diarréia, constipação, depressão, ansiedade, obesidade... até o estresse... são devidos a reações induzidas por alimentos. Isto contribuiu para o aumento de métodos de diagnósticos dos mais variados, o que dificulta e atrasa o diagnóstico precoce e confiável do problema. Suspeita-se que pelo menos metade das alergias alimentares que as pessoas acreditam sofrer, não são realmente alergias. É muito importante um diagnóstico preciso para evitar dietas desnecessárias que podem causar deficiências nutricionais em adultos e atrasos no crescimento e desenvolvimento de crianças.

Mafalda odeia sopa, nosso pequeno Shin Chan não gosta de pimenta e meu relacionamento pessoal com queijo deixa muito a desejar... nestes casos, é uma questão de gosto, mas nem sempre é assim.

Quando comemos e alguma coisa age negativamente sobre a nossa saúde, nós chamamos na medicina como "reação adversa a um alimento".

Até o ano 2000, a confusão em relação a este tipo de reação era muito grande; termos como intolerância, alergia, e reações adversas foram utilizados indiferentemente e sem controle. A "European Academy of Allergy" em 2001 simplificou a classificação de tais reações e definiu como hipersensibilidade a alimentos. Em 2003, a "Organização Mundial de Alergia" (WAO) revisou e aprovou esta classificação.

Hipersensibilidade alimentar

Alergia alimentar: envolve o sistema imunológico da pessoa.
Mediadas por IgE: é a forma conhecida como alergia. Existe risco de anafilaxia.
Mistas IgE/ não IgE: Gastroenteropatias eosinofílicas, esofagite eosinofílica.
Não mediada por IgE: proctite, Proctocolite alérgica e enteropatias/enterocolites por proteínas da dieta. Inclui a doença celíaca.

Hipersensibilidade alimentar não alérgica: Não mediada por mecanismos imunológicos. Antes eram conhecidas como intolerâncias alimentares.

Metabólica: existe um déficit de enzimas para a digestão dos alimentos (por exemplo, deficiência de lactase origina intolerância à lactose, um açúcar presente no leite).
Farmacológica: por substâncias químicas presentes naturalmente nos alimentos (histamina, etc).

Em outro artigo falo das características de cada um deles, especialmente as reações imunológicas à alergia alimentar, mas não mediadas por IgE. São as grandes desconhecidas e muitas vezes esquecidas pela nossa profissão.

Hoje eu quero focar nos métodos que temos nós, os médicos, para diagnosticar essas doenças.

O diagnóstico de hipersensibilidade alérgica alimentar é baseado em três aspectos fundamentais:

  • Demonstrar a associação causal (se o alimento que nós suspeitamos é responsável ou não);

  • Diferenciá-la de outras razões possíveis para a reação adversa (diagnóstico diferencial);

  • Demonstrar o mecanismo imunológico envolvido

Para isso, os médicos têm as seguintes ferramentas

  1. Anamnese: Essa palavra de origem grega que significa "rememoriar", trazer à mente as memórias do passado. Platão usava esse termo para referir-se à capacidade da alma para se lembrar dos conhecimentos esquecidos ao entrar em um novo corpo.
    Na medicina, a anamnese é a informação que o paciente dá ao médico, que torna-se parte da história clínica do paciente. Cada vez mais vai cedendo espaço a outros métodos mais técnicos e inovadores, também limitado pelos poucos minutos que cada paciente tem na agenda do médico. Nestas doenças, é uma ferramenta essencial. O médico deve deixar o paciente falar e também ouvi-lo. Especialmente mães de crianças com problemas deste tipo, que são sábias na história dos sintomas do seu filho e seus conhecimentos facilitam muito o nosso trabalho.
    A história clínica deve mostrar os possíveis alimentos causadores, como ele é ingerido, a quantidade, o tempo das reações, os sintomas e os fatores associados, tais como o exercício físico ou ingestão de aspirina ou álcool.
    Temos que aprender a ouvir e orientar o paciente através de perguntas apropriadas.

  2. O exame físico: Deve ser minuciosa. O médico através dele recebe informações sobre o estado dos diferentes sistemas do corpo humano (pele, respiratório, digestivo, etc.). Entre uma reação e outra pode se que não se encontre nada fora do comum. Deve-se monitorar os percentuais de altura e peso das crianças. Embora a história clínica, muitas vezes forneça informações sobre o possível alimento responsável pela reação alérgica, a anamnese e o exame físico sozinhos não conseguem diagnosticar essas possíveis hipersensibilidades. Para confirmar o diagnóstico, temos que solicitar exames complementares específicos.

  3. Exames complementares: Existem dois tipos diferentes.

    1. Testes "in vivo": realizados diretamente no paciente.

      • testes cutâneos: prick test, prick-prick teste. São usados extractos ou os alimentos diretamente sobre a pele do paciente. São rápidos e simples de executar. Também se aplica o alimento no adesivo na pele (patch test) com leitura depois de 48-96 horas, no caso de reacões do tipo não mediadas IgE.

      • prova de provocação oral: este é o método de referência em alergia alimentar e consiste em fazer uma exposição com o alimento suspeito em ambiente hospitalar e de forma controlada. O ideal é realizar o duplo cego, ou seja, nem o paciente nem o médico sabem o alimento que está sendo dado para provar. Para evitar reações psicológicas subjetivas, uma das ingestões é um placebo (alimentos que se assemelham ao real mas é falso)

      • Teste de desafio: consiste em eliminar da dieta o alimento suspeito por um tempo e, em seguida, reintroduzi-lo com cuidado. Este ensaio é frequentemente utilizado nos casos de IgE não mediado

    2. Testes "in vitro": realizados em laboratório.

      • Análise do sangue para determinar a IgE específica: Pode confirmar a suspeita diagnóstica da história clínica e prova cutânea. São especialmente importantes quando o teste "in vivo" são contra-indicados. Estes testes adicionais são destinados especificamente para o diagnóstico de reações alérgicas mediadas por IgE.

      • Estudo de fezes e de ar expirado: útil para a hipersensibilidade não alérgica de tipo metabólico a alimentos (antigas intolerâncias).

Um tipo de prova que inclui tanto o estudo direto do paciente quanto análise laboratorial, é a endoscopia com biopsia, isto é feito em alguns casos de reações alérgicas aos alimentos para determinar a resposta a mudanças na dieta.

Estes testes têm demonstrado ao longo dos anos a sua validade científica e são os únicos que podemos confiar hoje.

Existem métodos que se pretendem como diagnóstico e não tem validade pela comunidade científica e são usados por alguns médicos não especialistas. Ademais, é só mais uma despesa desnecessária, dão falsos diagnósticos e causam confusão entre os pacientes.

Deste modo, qualquer método de diagnóstico, que não tem demonstrado eficácia em ensaios clínicos devem ser considerados inválidos, ou de valor duvidoso ou ainda não comprovado.

Como sabemos se um teste é válido ou não do ponto de vista científico?

Um teste não é decidido arbitrariamente: esse sim; esse não... esse eu gosto; esse nem tanto.... Para que um método seja considerado válido para diagnóstico é necessário cumprir três requisitos básicos:

  1. Deve demonstrar-se válido: significa que o teste deve medir o que realmente se deve determinar. Os resultados obtidos com este teste são comparados com outros testes cuja validação já é reconhecida cientificamente.

  2. Deve ser reprodutível: se o teste é realizado várias vezes com a mesma amostra, sob circunstâncias semelhantes, o resultado deve ser o mesmo ou muito semelhante.

  3. Deve ser seguro: indica a confiança no resultado, ele vai dizer se a pessoa está realmente doente ou não. Para isso, se usa se utilizam parâmetros já estabelecidos pela comunidade científica.

Um teste será incerto ou não comprovada quando não estiver em conformidade com os requisitos acima. Em tal caso, não é apropriado chamá-lo de "diagnóstico". Por esta razão, devemos ser muito cautelosos e não ser seduzido pela publicidade bombástica e enganosa de alguns testes chamados de "Testes de intolerâncias e alergias alimentares." A quantidade de testes comerciais que asseguram poder diagnosticar a hipersensibilidade alimentar é grande e continua a aumentar. Eles representam uma maneira irresponsável, rápida e fácil de ganhar dinheiro.

Quais são esses testes de diagnóstico de valor duvidoso ou não comprovado nas reações a alimentos?

  1. Provas "in vitro" (análise no sangue):

    1. Testes citotóxicos (Teste ALCAT, NOVO Immogenics): baseia-se em colocar no laboratório, as células do sangue do paciente em contato com vários alimentos e observar se elas mostram alterações indicando que tenham sido activadas, como o aumento no tamanho ou do número. O nome é muito científico e a idéia parece confiável, mas na verdade, esta técnica é utilizada em estudos imunológicos para outros fins; mas os resultados são muito subjetivos, não reproduzíveis e de pouca confiança. Não há nenhum país onde os planos de saúde ou a saúde pública cubram esses testes. Não há artigos de qualidade publicados em revistas médicas que forneçam dados sobre o seu valor científico. Estudos que os representão são resumos apresentados em Congressos ou publicados em revistas menores. Os problemas de saúde estes testes "resolvem" são tantos que cheiram a enganação ou liberação de poderes mágicos.

    2. Testes de determinação IgG específicos diante de alimentos (Teste A200, Teste IADM ou intolerâncias alimentares Dieta Mediterrânea, ImuPro300, Teste FIS): durante os anos 90, apareceram laboratórios ofereceram determinação das imunoglobulinas (anticorpos) na presença de alimentos, mas na atualidade, o IgG específico é o que tem mais proeminência. É avaliado na presença de uma longa lista de alimentos e, de acordo com os resultados do paciente é aconselhado evitar um número grande de alimentos, uma dieta bastante difícil.
      Quando os estudos científicos que comparam esse teste com os de alergia alimentar de referência, de provocação oral, os resultados não corresponderem, eles não são reprodutíveis e não se correlacionam com a clínica do paciente de modo que a sua utilidade está sendo questionada.
      A presença de IgG em alimentos indica exposição a eles, ou seja, o contato regular, e não serve para o diagnóstico de alergia alimentar.
      Além disso, foi observado que estes níveis de IgG, especialmente o IgG4 aumentam quando a pessoa adquire tolerância ao alimento que tinha alergia alimentar e não quando piora, como defendido pelos fabricantes de tais testes.

    3. Análise capilar (mineralograma do cabelo): detecta minerais e metais pesados em uma amostra de cabelo. Baseia-se na ideia de que são os metais pesados que causam a intolerância.

  2. Testes in vivo (no paciente): As técnicas seguintes não têm credibilidade científica nem provaram a eficácia clínica para o diagnóstico de reações de hipersensibilidade alimentar.

    1. Biorresonancia (Teste ELMA, Nutri10, LaPHYTEST): é uma corrente médica alternativa que compreende a doença como um desequilíbrio de energia, de modo que o corpo doente emite ondas electromagnéticas alteradas. Um aparelho de Biorresonância é capaz de capturar estas ondas, equilibrá-las e devolver ao paciente ja normalizadas. Diagnostica e trata de uma vez, várias anomalias, além das reações aos alimentos, tais como a artrite, fibromialgia, fadiga crónica e até mesmo câncer.

    2. Kinesiologia Aplicada: Este método se baseia em que cada alteração do organismo é acompanhada por uma diminuição da força muscular. Alimentos suspeitos são preparados em uma garrafa de vidro que o paciente tem para segurar com uma mão. Se mede a perda de força do braço oposto.

    3. Provocação e neutralização subcutânea e sublingual: é a administração sublingual ou subcutânea de extratos de alimentos progressivamente até que os sintomas apareçam, depois é administrada uma diluição maior para neutralizá-los. É usado por ecologistas clínicos. Há um envolvimento subjetivo do paciente. Os sintomas se reproduzem nesses pacientes quando um placebo (alimentos falsificados) é administrado.

    4. Teste DRIA: com base em que, quando há hipersensibilidade a um alimento, ocorre uma diminuição da força muscular ao consumi-lo. É administrada debaixo da língua (sublingual) e se houver uma queda na forçamuscular acima de 10%, se considera que existe uma reação a esse alimento.

    5. Electroacupuntura ou teste eletrodérmico: consiste na medição da resistência da pele durante a passagem de uma corrente eléctrica em pontos específicos para detectar a hipersensibilidade alimentar. Se uma queda na corrente ocorre quando a placa de alumínio toca a pele, é considerada como diagnóstico.

    6. Pulso Reagínico: teste de pulso que é medir se há alterações na frequência do pulso, após o paciente ter consumido o alimento suspeito.

Muitas vezes, estes testes e provas fornecem informação nutricional adicional e excluem um grande número de alimentos supostamente prejudiciais por longos períodos de tempo.

Sem orientação nutricional adequada, uma dieta restritiva pode levar a graves carências alimentares. No caso das crianças também afeta gravemente o seu crescimento e desenvolvimento.

Você pode encontrar as opiniões que têm sociedades médicas sobre o uso deste tipo de testes nos seguintes links: WAO (Organização Mundial da Alergia), EAACI (European Academy Alergia), SCAIC (Catalão Society Alergia), SEAIC (Sociedade Espanhola de Alergia), SEEN (Sociedade Espanhola de Endocrinologia Nutrição), SEEDO (Spanish Society Estudo obesidade) e AEDN (Associação Espanhola Dietistas Nutricionistas)

CONCLUSÕES :

  • O diagnóstico de hipersensibilidade alimentar é conseguido através da história clínica e as provas científicas disponíveis (validadas), entre os quais os testes cutâneos, determinação de IgE específica e testes de exposição (provocação).

  • Atualmente não há nenhuma alternativa ou método complementar que possa ajudar no diagnóstico de reações adversas ao alimento. Estes testes não são recomendados na prática clínica porque não preenchem os requisitos para ser cientificamente válidos.

  • Métodos diagnósticos não validados são caros e atrasam o diagnóstico e tratamento adequado em pacientes com hipersensibilidade alimentar.

  • Todos os médicos devem estar atentos sobre o seu uso e proteger os pacientes.

Como médica, estou ciente de que, por vezes, chegar a um diagnóstico e obter sucesso em resolver o problema colocado pelo paciente pode ser complicado, demorado e até decepcionante para ambas as partes.

Isto não tem que nos levar a "pegar" como uma tábua de salvação, testes enganosos na sua publicidade, em seus métodos e resultados pois o único que fazem é produzir um custo humano e econômico totalmente condenável. O melhor nestes casos é muitas vezes voltar a consultar com o especialista adequado e repensar o problema. Às vezes, há sinais que podem passar despercebidos ou que podem se manifestar de diferentes maneiras.

Contato e comunicação com o seu médico é essencial.

Chego ao final deste artigo respondendo a pergunta feita pelo meu paciente:

Doutora, eu li na internet que existem alguns testes que informam todos os alimentos que te fazem mal, mesmo para as pessoas que sofrem de alergias. Eles são muito caros, um sinal de que devem ser bons, também a minha vizinha fez e disse que mudou sua vida. Você recomendaria para mim?

Minha resposta é um retumbante NÃO, sem exceção nem dúvidas!

Dra Pilar Cots. Alergista - Madrid.

Fonte: http://nosinmialergia.blogspot.com.br/2012/12/lo-intolerable-de-las-intolerancias.html

Tradução e adaptação: Beth Alamino